Crónicas do Dr. Ribeiro (3)
Sobre a Cirurgia Minor em caso de lesão por cabo de sachola
Nunca fui de enganar ninguém. Situações ocorreram na minha prática clínica, em que me chamaram disto e daquilo, mas sempre sem fundamento! Gabo-me de ter ganho em Tribunal todas as acusações de que fui alvo. Um homem que é bom naquilo que faz, não tem contas a dar a ninguém… Não era ao acaso que o Magnifico Doutor Andrade me escolhia sempre para ser o Chefe de Turma das Aulas de Anatomia, título que me fazia sentir honrado e ciente do meu dever. É porque de certeza ele via algo em mim, que essa gente acusa-cristos nunca soube apreciar!
Numa dessas ocasiões conturbadas da minha vida, vejam bem, entra-me um petiz pela urgência, em óbvio sofrimento, mancando do lado esquerdo, e com três nódoas negras nos queixos, que cá para mim, correspondiam a três pauladas por cabo de sachola, agressão que naquela época era prevalente na Lousã, principalmente quando estava em jogo a disputa de terrenos entre vizinhos. Tratei as feridas do miúdo, na sua maioria contusões ligeiras, não tendo havido necessidade de recorrer a qualquer sutura com fio de nylon. Preocupou-me no entanto, a situação do rapaz…não tinha idade para andar à porrada por causa de propriedades… e então perguntei-lhe: “Ó menino… quem é que te bateu na cabeça?...ele encolheu os ombros e disse que ninguém lhe tinha batido, mas que tinha sim, caído das escadas lá na escola.
Tendo a perfeita noção que o tinha apanhado, retorqui: “Mas ó menino, hoje é domingo! Não há escola para ninguém! E a Tele Escola da Lousã não tem sótão, quanto mais escadas!”…Perante isto, lá começou a soluçar, dizendo:”O Doutor Ribeiro é muito bom para mim… o meu pai é que não… espeta-me uma surra todos os dias…e hoje, depois da missa, fomos às corgas, e quando me apanhou a jeito, virou-me a sachola à cara…”.
Já irado, indaguei: Então e porque é que o sacana do teu pai te faz isso todos os dias?”. Responde-me o garoto:”Diz que eu ando a beber… mas eu nunca bebi! Nunca! Na minha boca, só entra Água e Sumol! Nunca me meti no vinho! Mas o meu pai diz que eu é que tenho andado a esvaziar o pipo! E isso não é verdade! O meu pai e a minha tia é que abusam do álcool! Eles é que levam a garrafa para a cama, quando se vão deitar!”
“Mas com quem é que tu vives, rapaz?”, perguntei-lhe eu. “Vivo com o meu pai e com a minha tia.”, responde-me...“Então e a tua mãe?”, perguntei-lhe eu. “A minha mãe morreu.”…
“E o teu tio?”, já intrigado. “O meu tio não está cá”, disse-me o miúdo.
A braços com este drama, senti uma revolta interior abismal…mas tinha que me certificar que o miúdo estava a falar verdade…havia duas coisas a fazer…
Primeiro, sentir-lhe o hálito…ora o miúdo emitia pela boca, um cheiro sadio, em nada típico de um alcoólatra. E ainda para mais, não padecia de fígado gordo à palpação. Segundo, voltar-lhe a perguntar se estava a mentir: “Ó miúdo, tu não estás a mentir ao Doutor Ribeiro, pois não?...e o gaiato responde: “Doutor Ribeiro, estou a falar a mais pura das verdades… pela Alma da sua Mãe e da Minha!”
…Era tudo o que eu precisava de ouvir! A minha decisão clínica estava tomada. Este garoto era deveras saudável e o seu pai, um déspota. Peguei na jaqueta e dei a seguinte ordem: “Enfermeira Manuela, eu e este menino vamos a casa do pai dele! Escusa de estar à minha espera para jantar!”. E segui caminho.
Ao chegar ao seu domicílio, dou de caras com o patriarca sem escrúpulos…dirijo-me a ele e questiono-o:”Oiça lá! O Senhor é o pai deste rapaz? Então acha bem andar a dar-lhe uma coça todos os dias?...Um menino tão puro e sereno? Quando ele nem bebe e é o melhor aluno do seu ano?!”.
O homem, Francisco de nome, dirige-se a mim com a sua sachola, e tem as seguintes palavras para comigo, palavras essas que ainda hoje me desarranjam o estômago, se associadamente comer fritos: “O Doutor Ribeiro é bom homem, e sei que quer o melhor para a Lousã…não é isso que está em causa! Mas eu também quero o melhor para este menino! E este meu filho já me fez de tudo na vida! Primeiro, foi a Aguardente velha…enchia-se dela aos Sábados com os amigos…grandes amigos!... Depois foi o MARBORO… andava-me na cigarrada quando ia comigo para os Olivais!... Mas o pior estava para vir! Fique então a saber, Doutor Ribeiro, que este menino agora meteu na cabeça que quer ir estudar para Coimbra!! Para Coimbra, vejam só! Do que se foi ele lembrar, quando sabe que o pai não tem posses para isso e, além do mais, a sua vida é aqui na Lousã, comigo, a tratar dos animais! Então não há-de levar porrada, este safado?
Ouvi, em silêncio, o que este senhor tinha para me dizer, e seguidamente, imbuído de uma inspiração paternal e universal, ditei a seguinte Boa Nova: “Pois fique sabendo, que dentro de um mês, eu próprio matricularei este menino no Liceu de Coimbra, com vista a ingressar futuramente no Curso de Medicina! Pagarei os estudos deste menino, até que ele se forme e possa vir servir a Lousã!”.
Poucos segundos depois, a população abeirou-se das suas varandas e começaram a bater palmas, a Banda Filarmónica saiu à rua tocando canções de alegria e o gado aproximou-se do centro da vila, ao som de chocalhos, enquanto o Pai Francisco permanecia agora calado… Tudo porque eu tinha dado um Futuro a este rapaz!